No início de 2017 veio a público a primeira decisão judicial na esfera trabalhista que determinava o reconhecimento do vínculo empregatício entre a empresa Uber e um de seus motoristas cadastrados (analisamos essa decisão minuciosamente e pode ser consultada aqui).
A decisão foi expedida na 1ª instância de Belo Horizonte e, como já era de se imaginar, foi objeto de recurso que veio a ser analisado e definido em acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região nas últimas semanas.
O TRT interpretou o caso de forma completamente oposta ao que foi determinado pelo juízo anterior, definindo pela total improcedência dos pedidos feitos pelo autor, no caso o motorista, e não reconhecendo qualquer tipo de vínculo de emprego.
Ainda, no acórdão (que você pode acessar de forma integral aqui) é possível analisar que todos os elementos previstos no artigo 3º da CLT foram absolutamente rejeitados pelo desembargador, além de questões discutidas em sede de preliminar e que não serão expostas aqui por não fazerem parte do foco desse artigo.
Ressaltamos que esse tipo de entendimento pode vir a ser utilizado por outras empresas que atuam de forma semelhante e que, antes desse posicionamento do judiciário, tinham um receio de que o modelo de negócios estava fadado a condenações altas ou ao menos a um passivo trabalhista a longo prazo.
A fim de apresentar de forma clara os pontos analisados em 1ª instância e os motivos pelos quais o Tribunal entendeu de forma diversa em 2ª instância, vamos elencar as decisões lado a lado em seus tópicos relevantes e analisar cada um dos 04 pontos quando o assunto é reconhecimento de vínculo empregatício: Pessoalidade; Habitualidade; Subordinação e Onerosidade.
Pessoalidade
Decisão de 1ª instância | Decisão de 2ª instância |
“Resta claro, portanto, o caráter intuitu personae da relação jurídica travada pelas partes, principalmente porque não é permitido ao motorista ceder sua conta do aplicativo para que outra pessoa não cadastrada e previamente autorizada realize as viagens.” | “Diversamente do que se entendeu na origem, não há prova da pessoalidade na prestação de serviços, na medida em que o reclamante poderia, sim, fazer-se substituir por outro motorista, que também fosse cadastrado na plataforma.” |
Conforme exposto aqui e também no referido Acórdão, o Tribunal interpretou que a Uber permitiu o cadastramento de outros motoristas para o mesmo veículo. Tal situação seria o suficiente para afastar a pessoalidade na relação contratual, item indispensável para o reconhecimento do vínculo de emprego.
Habitualidade
Decisão de 1ª instância | Decisão de 2ª instância |
“Assim, não há dúvidas de que, ainda que a ré atue também no desenvolvimento de tecnologias como meio de operacionalização de seu negócio, essa qualificação não afasta o fato de ser ela, sobretudo, uma empresa de transporte.” | “Ora, considerando que o objetivo do aplicativo desenvolvido e utilizado pela reclamada é conectar quem necessita da condução com quem fornece transporte, inexiste escolha por veículo ou seu condutor, acionados quaisquer motoristas disponíveis próximos ao local do chamado.” |
A discussão aqui é um pouco mais complexa, vez que a decisão do TRT altera o entendimento sobre a atividade empresarial da Uber. A sentença do primeiro magistrado interpretou que a Uber era uma empresa de transporte, contudo, para o segundo magistrado, a reclamada é uma empresa de tecnologia que visa conectar pessoas para facilitar-lhes o transporte. Tal compreensão faz com que o Tribunal interprete que a habitualidade não existe, vez que o motorista só trabalharia quando fosse “aleatoriamente” selecionado.
Subordinação
Decisão de 1ª instância | Decisão de 2ª instância |
“Na hipótese dos autos, sob qualquer dos ângulos que se examine o quadro fático da relação travada pelas partes e, sem qualquer dúvida, a subordinação, em sua matriz clássica, se faz presente. O autor estava submisso a ordens sobre o modo de desenvolver a prestação dos serviços e a controles contínuos. Além disso, estava sujeito à aplicação de sanções disciplinares caso incidisse em comportamentos que a ré julgasse inadequados ou praticasse infrações das regras por ela estipuladas.” | “Tais orientações não caracterizam subordinação jurídica do reclamante à reclamada, não implicam na ingerência da empresa na forma da execução do contrato, devendo ser aferida a adequação dos serviços e infraestrutura prestados pelo motorista às necessidade do sistema de atendimento projetado pela empresa ré. Isso não extrapola os limites do ajuste entre os contratantes, constituindo normas pontuais da reclamada a serem observadas para execução do contrato, de modo a atender o próprio objetivo deste. Ressalte-se que, no aspecto da não obrigatoriedade de manutenção de "balinhas e água" nos veículos, reconheceu o próprio Juízo Sentenciante, no penúltimo parágrafo, p. 24, do id. 2534b89 que "O fornecimento de 'balinhas', água, o jeito de se vestir ou de se portar, apesar de não serem formalmente obrigatórios, afiguram-se essenciais para que o trabalhador consiga boas avaliações e, permaneça 'parceiro' da reclamada, com autorização de acesso a plataforma".” |
O desembargador definiu em 2ª instância pela inexistência de subordinação, seja ela clássica ou a suposta subordinação estrutural defendida pelo juízo de 1ª instância. Em suma, o TRT interpretou, pelos fatos conhecidos e pelos depoimentos, que inexistia exigência para cumprimento de condutas específicas, mas simples orientações que permitissem o bom funcionamento da plataforma e dos serviços utilizados por motorista e passageiro. Esse ponto talvez seja o de maior polêmica, vez que não foram consideradas algumas partes do depoimento de testemunha em que é mencionada as punições aplicadas aos motoristas que não seguissem tais definições da Uber. De qualquer forma, também foi negada a subordinação em absoluto.
Onerosidade
Decisão de 1ª instância | Decisão de 2ª instância |
“A afirmação da reclamada de que era o reclamante, enquanto contratante, que a remunerava pela utilização da plataforma digital não se sustenta à luz do Princípio da primazia da realidade sobre a forma, por afrontar cabalmente a realidade dos fatos.” | “De todo modo, a onerosidade, por si só, não é o bastante para caracterizar a relação empregatícia, devendo estar presente em concomitância com os demais supostos do artigo 3º da CLT. Contudo, o valor auferido, admitido na inicial (variável entre R$4.000,00 e R$7.000,00) e o percentual de cada parte na divisão do preço cabendo à ré 20%, não se coadunam com o labor em atividades semelhantes desempenhadas por empregados.” |
Por fim, a onerosidade foi pouco discutida no Acórdão, mas também foi negada, atendo-se principalmente aos valores retidos pela reclamada se comparado a média do salário de motoristas/taxistas. Não obstante, também se deixou claro que a onerosidade por si só não seria característica suficiente para o reconhecimento do vínculo, fazendo menção até mesmo ao conceito dos contratos sinalagmáticos para justificar os direitos e deveres das partes.
Conclui-se
Dessa forma, observa-se que o Tribunal apresentou uma interpretação completamente oposta ao entendimento de 1ª instância.
Por um lado, pode-se ver tal situação com bons olhos, vez que expõe uma compreensão da nova realidade dos mercados trazida em grande parte por tudo aquilo que a tecnologia proporciona. No entanto, passa-se também a questionar a segurança jurídica de modelos de negócio disruptivos em uma justiça brasileira que interpreta a mesma situação de forma totalmente antagônica, escancarando a subjetividade de nosso judiciário.
Por isso, cabe-nos frisar que o empresário deve sempre buscar uma orientação profissional capacitada e de sua confiança. Assim, mesmo que parcialmente, pode-se ter algum embasamento legal que proteja seu empreendimento e sua pessoa física de eventuais dissabores.
Por Luiz Eduardo Duarte